Luís Simões, travel sketcher around the world

China
Como é que se percebe a flexibilidade de um país?
Cheguei à China de comboio depois de dois intensos meses na Russia e Mongólia. A última paragem do transmongoliano era a desbocada estação de Pequim, que recebe milhões de viajantes por hora. Senti-me minúsculo naquela gigante confusão humana que, apressadamente, pisa o solo chinês. Tentei nortear-me no novo mundo exótico, mas a minha realidade estava longe de entender os olhos rasgados que cruzavam a minha viagem.
Á medida que a aventura foi decorrendo, percebi que a imagem de desenvolvimento e progresso são os enormes edifícios, museus e as estações de comboios. Fazia-me confusão percorrer cidades com dezenas de arranha céus completamente despovoados. Perguntava-me quem quererá viver num vigésimo andar, quando toda a vida foi feita em torno de um rés do chão. Que forma esta de preparar o futuro das cidades que parece esquecer o fundamental de um país: a sua cultura e educação.
Nas conversas que ia tendo com chineses, ninguém me soube dizer ao certo quantas províncias existem na China, quantos dialetos se falam ou quanto custa uma pequena garrafa de água. A resposta demorava a ser dada e dependia sempre daquela que veio a ser a minha forma de viver este país: a flexibilidade. Tudo se reduz à flexibilidade de cada um que, muitas vezes, podia ultrapassar a minha.

Mas como é que se percebe a flexibilidade de um país?
A minha percepção “Made in China” ganhou outro sentido quando entrei na profunda “China-Town”. Se há algo que aqui se faz em excelência, é a cópia de tudo o que existe a preço insuportável para este país. A flexibilidade de cada um faz o mercado girar consoante o poder de negociação individual. Vive-se um período consumista baseado em oportunidades, embriagado por telemóveis com câmaras prontas a disparar e a partilhar nas permitidas redes sociais. Mas tudo isto que estranhei no início e tarde se tornou num incomodo, a flexibilidade fez questão de mudar.
O picante, que não pedi e veio tirar todo o sabor à comida, segundo o empregado é impossível estar picante. Quando o proibido fumo de cigarro às quatro da manhã no dormitório do hostel, é sinal de maturidade e na vez de o apagar, oferece-me um cigarro. Quando a minha presença distraí a criança que faz as necessidades na rua enquanto todos se empurram para entrar no autocarro e, pelo meio, alguém grita de dedo esticado “estrangeiro!”. A curiosidade, que não tem limites de privacidade, permite folhear o meu caderno mesmo estando a desenhar. O silêncio, que tantas vezes desejei, foi interrompido por berrantes conversas ao telefone e que no final até deu para aprender algumas palavras em Chinês.
A China fez-me perceber que à medida que a flexibilidade ganhou espaço dentro de mim, todos estes pormenores tornaram-se insignificantes e a tolerância deixou-me ver outra realidade. Apesar de muitas contradições e perguntas persistirem, hoje este país é um lugar muito mais desejado e compreendido por mim graças aos detalhes de um olhar flexível.

Luís Simões
Em 2012 comecei a World Sketching Tour e desde então, esse tem sido o meu estilo de vida. Mais intenso, mais para os outros, mais aberto sobre como olhar e julgar. A viagem fez-me sair de rotinas e lugares seguros, que muitas vezes me deixam dormente, só de ver a vida passar lentamente. O desenho despertou a minha curiosidade para o "como será do outro lado da montanha".
Já tínhamos saudades de uma crónica tua, Luís!
E esta dá-nos uma visão muito interessante desse “gigante”!
Depois de 2 anos (acabadinhos de fazer!!!) desde a tua partida, já quantos anos sentiste que “cresceste”…?
Grande beijinho!
Clara
Parabéns pelos dois anos de estrada. Continuo a achar que o WST é um dos mais entusiasmantes projetos de viagem que vi nos últimos tempos. Força, companheiro!
Pingyao?