Conforto

Sem dar conta disso, o Homem habitua-se depressa ao conforto e ao que dá menos trabalho. Especialmente se estivermos metidos naquilo a que eu chamo de sistema.

A recém chegada dos meus pais ao trajecto final da minha odisseia pessoal, foi como festejar o Natal em Fevereiro. Trouxeram bacalhau, azeitonas, couves, laranjas, pastéis de nata, morangos com natas, camarões com maionese, tostas com manteiga salgada e cerelac… foi comer o dia todo. O ar de felicidade, preocupado, da minha mãe, que me via comer e o meu pai, aparentemente despreocupado: «tens passado pouca fome, tens!»

No meio da brincadeira, perguntei-me: mas o que é ter fome, afinal? Poderá ser a fome sentida de maneira diferente por cada um, ou fome é fome e não se fala mais nisso?

Há muito que me dizem: “é pá, estás magro!” sempre com aquele tom de alarme, entristecido. Até era capaz de perceber se estivesse agarrado a um saco de soro numa cama de hospital e me dissessem “estás tão magro”. Aí sim, era capaz de estar lixado… como não estou, lá tento explicar. Aquela mesa tão típica portuguesa carregada de excessos, não veio na mochila. O nomadismo atira-me para uma forma diferente de viver e alimentar-me. Só como se tiver fome e só gasto o essencial. Se não tenho comida sempre que me apetece comer, não é sinal de passar fome. Diria por outro lado, que esse controlo alimentar, baixou os níveis de exigência e aumentou o contentamento perante o pouco que às vezes tenho. Mas isso é passar fome, podem-me dizer vocês. Ao que eu respondo, isso é apenas o inicio da minha aventura. Descobri outras formas de me alimentar sem ter de comer muito com diferentes escolhas e cozinhar rápido com pouco, evitando comer tudo o que me apetece. O sorriso esse, perante abundância ou um miserável prato frio, será sempre o mesmo. Mesmo com fome a alegria chega no momento de partilhar um pouco do pouco que me pertence: «maldita massa que estava uma treta, não achas?!»

Sem dar conta disso, o Homem habitua-se depressa ao conforto e ao que dá menos trabalho. Especialmente se estivermos metidos naquilo a que eu chamo de sistema. O sistema, é o meio que nos leva a pensar dentro de regras e a ser mais um na carneirada. Foi isso que concluí assim que pousei a mochila na auto-caravana. Tenho uma cama só para mim, dois armários para a minha roupa, uma casa de banho e comida feita pela mãe. O sistema está montado. A isto tudo, quem é que pode dizer que prefere andar a passar frio, carregado com mochilas e sempre à procura de um tecto para dormir. Digo eu! É isso que me faz viver sem limites e livre. Mas calma, deixem-me viver este momento por uns tempos, até porque vou ter tempo de andar como quero e não quero.

Depois, veio a segunda pergunta. Quais serão os ingredientes para se viver feliz, justificando assim, que o que mais se queria era uma bela bifana no pão? Tenho procurado, entre os vários mochileiros que já conheci, qual é o manual de sobrevivência para meses a fio longe de casa (para quem a tem). Pegar na mochila e ser vagabundo sem rumo, pode ser giro durante uns meses, mas feito isso e a viver só com as necessidades básicas, as primeiras questões internas aparecem. Fazer uma grande viagem sozinho requer uma aceitação gradual do que somos e do que aprendemos com os outros. Seremos insignificantes o quanto baste para que ninguém nos veja, se nos perdermos pelo caminho da solidão. Mas mesmo que queiramos isso, seremos uns bichos do mato se nos fecharmos no nosso mundo. O que é então uma viagem se é para andarmos isolados do conhecimento. É surpreendente perceber que, para muitos mochileiros aceitar a vida como ela é, significa: não viver à espera de ajuda, correr perigos e nunca ficar parado. Para muitos, isto pouco será verdade, para outros como eu, é a matriz que nos guia o instinto. Uma aventura acompanhada, não invalida que não se aprenda tudo isto, mas a constante partilha e troca de ideias, tornará a experiência menos pessoal. Será principalmente uma partilha de conhecimentos e aprendizagens adquiridas em conjunto.

A caminho de Montpellier – 18 Fevereiro, 2013
Luís Simões
Luís Simões

Em 2012 comecei a World Sketching Tour e desde então, esse tem sido o meu estilo de vida. Mais intenso, mais para os outros, mais aberto sobre como olhar e julgar. A viagem fez-me sair de rotinas e lugares seguros, que muitas vezes me deixam dormente, só de ver a vida passar lentamente. O desenho despertou a minha curiosidade para o "como será do outro lado da montanha".

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2 comentários

  1. Obrigada, Luís, por mais esta lição de vida!!!
    Um belo texto para reflexão…!

    Beijinho e continuação de boa viagem!

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