Quanto queres pelo desenho?

O sol às nove horas já está tão desperto e quente, que nem penso duas vezes em pegar nos calções, chinelos e bicicleta para seguir em direcção ao prazer de livremente desenhar o que me apetecer...

O bom tempo está a chegar e se há algo que não quero perder, neste primeiro ano, é o norte da Europa no verão. Foi com este objectivo que percorri França numa semana. Foi doloroso ter que fechar as portas às dezenas de vontades que me foram surgindo pelo caminho. Exigi mais do corpo para aproveitar cada minuto a explorar as cidades. Desdobrei o dia em vários momentos curtos mas intensos. Sei de antemão que não vou conseguir ver tudo e, por isso, aproveito o tempo numa praça onde se pode escutar ao fundo alguém que toca uma guitarra. A ver as pessoas a passear em conversa animada. Conhecendo outras que se aproximam curiosas.

Entre perguntas e respostas, acabo num bar, Le Pilier Rouge, a convite de Fabien, depois de vários elogios ao que faço. Ao chegar, o dono do bar, encantado com o desenho da fachada do seu bar, oferece-me um whisky velho e comemora comigo a minha breve passagem por Le Mans. A noite continua com festejos, mais encontros e com as primeiras lições de francês. «Aqui as raparigas são muito convencidas» diz-me Fabien, «andam sempre de nariz arrebitado e para as conseguires convencer que és um tipo bacano, tens que te esforçar muito… bem, tu tens os desenhos que dá sempre logo outra graça.» Fabien é aquele tipo que fala a sorrir e escuta com atenção o que lhe dizem. Meio abrutalhado mas genuíno. Num aperto de mão com Fabien, percebe-se que o rapaz alimenta-se bem. Conhece Lisboa e vamos falando da vida e das suas experiências por lá «quero voltar em breve. Adorei a tua cidade!», sorrio «…quando lá chegares, dá um abraço à minha gente!» Vou conhecendo mais amigos e dos amigos, vou fazendo desenhos. «Caramba meu! C’et très bon! Quanto queres pelo desenho?» pergunta-me Riko, um dos amigos de Fabien. «Não quero dinheiro, se quiseres paga-me uma bebida.» e assim foi a noite inteira, os desenhos a puxarem a bebida e a bebida a puxar mais um brinde. O dia seguinte custa mais um pouco à cabeça e ao corpo. Custa, porque são sete da manhã e já estou de caminho para mais uma cidade.

Amiens acorda silenciosamente. O sol às nove horas já está tão desperto e quente, que nem penso duas vezes em pegar nos calções, chinelos e bicicleta para seguir em direcção ao prazer de livremente desenhar o que me apetecer, na companhia de quem aparecer e com quem quiser ficar no desenho. Privilégio que continuamente agradeço a todas as pessoas que o tornam mais interessante e único. Jacques Duval é uma delas. Dá o primeiro passo e pergunta-me se pode ver o desenho que estou a fazer. Confessa que já tentou desenhar a Catedral e não lhe saem bem as cores. Tem como paixão a fotografia e prefere o registo clássico da película. «O digital deixa a foto demasiado limpa, não tem o mesmo encanto. As pessoas perguntam-me como faço para depois ver a foto que tiro? Respondo: da mesma maneira que se fazia há uns anos passados. Esta nova era do consumo rápido não me agrada nada.» Jacques, faz-se acompanhar por uma Laica e um sorriso generoso. Tão generoso que acabamos os dois sentados um café a conversar e a tirar umas fotos. Não fala fluentemente inglês, mas para um francês está bastante bem. Vive na Normandia e a sua casa tem uma vista fabulosa para o mar. Faz questão de me receber e convida-me a passar lá uns dias a desenhar.

Despedimo-nos e ao longe apercebo-me de algo que me dá vontade de chegar mais perto. «Olá! Vi que estavas a rabiscar num pequeno caderno, é o teu caderno de viagens?» pergunto eu. «Olá! Sim, gosto muito de escrever e aproveito para ir registando o que vou vivendo.» O caderno mantêm-se fechado. Infelizmente, para a minha curiosidade, é demasiado pessoal para eu ter acesso ao que viveu. Porém oferece um sorriso interessado em conhecer o meu caderno. Hoje, só por ser diferente, acabamos por seguir juntos à procura de um lugar que «morria se não o visse» diz ela. Já ando há uns dias na rua e se há coisa que ganhei com isso é a intuição para os locais interessantes das cidades. Porém, aceito o desafio e sigo as indicações de Marie, Canadiana a estagiar numa empresa em Paris, mesmo sabendo que iríamos voltar a refazer o caminho. Insisto «Tens a certeza que é por aqui? …acho que devíamos perguntar a alguém se sabe onde fica o que procuramos». «Não tenho a certeza, mas julgo que estamos bem. Olha está ali um casal de velhotes vamos perguntar!» «Têm pinta de estrangeiros… devem saber tanto como nós.» digo eu, outra vez, duvidoso da escolha dela.

Quando a rua é o nosso local de trabalho, conheces os sinais corporais, cores, caras, roupas, que tudo somado… «…embora lá!» Bingo! Damos de caras com uns Belgas em viagem de bicicleta por Amiens. Em meias palavras, o velhote explica que o que queremos é para o outro lado, reforçando a ideia que era para onde eu dizia. Marie vai sorrindo à medida que vai falando com o velhote. Faz isso e vai olhando para mim em jeito de quem pede desculpa. Nesse preciso momento, tenho novamente a resposta, de não querer companhia nesta viagem. Um cabeça pensa melhor sozinha quando sabe o que quer. Mas hoje queria que fosse diferente. Seguimos então e damos com o destino pretendido, Saint-Leu (Quai Bélu). Um local cheio de pequenas casas com um canal atravessado à sua frente, balizado por duas pontes. As esplanadas estão cheias de gente em consumo gastronómico, acompanhadas por dois bons músicos que vão tocando grandes clássicos. Cenário perfeito para um contemplado desenho.

Sigo caminho, já sozinho, percorro os canais de Amiens. Não todos, porque seriam precisos vários dias. Já de regresso, despedindo-me de Amiens e do que me resta, para já, de França, encontro novamente Marie. Seguia sozinha pela rua de phones postos nos ouvidos e óculos de sol. Sol esse, que já lhe tinha dado a cor rosada. Felizes por nos vermos outra vez, decidimos que podíamos fechar o dia com um brinde ao nosso dia a beber algo num café. Entre desenhos, palavras soltas, desejos e futuro, recebo a melhor frase «Life holds special magic for those who dare to dream». Merci Marie!

Até já França!

Luís Simões
Luís Simões

Em 2012 comecei a World Sketching Tour e desde então, esse tem sido o meu estilo de vida. Mais intenso, mais para os outros, mais aberto sobre como olhar e julgar. A viagem fez-me sair de rotinas e lugares seguros, que muitas vezes me deixam dormente, só de ver a vida passar lentamente. O desenho despertou a minha curiosidade para o "como será do outro lado da montanha".

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2 comentários

  1. Não acredito que conheceste o Fabien!!!
    É como ir a Roma e não ver o Papa =)!
    Boa descrição e os desenhos maravilhoros!
    Bom trabalho!

  2. És o verdadeiro navegador Português do séc XXI. Deixa por esse mundo fora a nossa marca principal. A camaradagem, a boa disposição, a amizade.
    Tens uns desenhos simplesmente fabulosos.

    Abraço e boa viagem

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